No livro “Emília no país da
gramática”, do escritor brasileiro Monteiro Lobato, Emília – uma boneca de pano
– juntamente com outras personagens aventuram-se num país imaginário no qual
seus moradores são as palavras da Língua Portuguesa. Ao chegarem em uma cidade
movimentada e diferente, D. Etimologia, uma das moradoras do local, explica
como é a vida por lá.
GENTE DE FORA
Aqui na cidade nova as palavras
vindas da cidade velha misturaram-se com inúmeras de origem local, ou palavras
índias, que já existiam nas terras do Brasil quando os portugueses as
descobriram. A maior parte dos nomes de cidades, rios e montanhas do Brasil são
de origem índia, como Tremembé, Itu, Niterói, Itatiaia, Goiás, Piauí, Piramboia,
etc.
Ita é uma palavra da língua tupi
que quer dizer Pedra, e tem servido de Prefixo para a formação de muitos Nomes.
Temos em São Paulo a cidadezinha de Itápolis, formada de Ita, que é indígena, e
Polis (cidade), que é grega. Pira (peixe) é outra palavra tupi muito usada.
Piracicaba, Piraquara, Guapira.
— Eu gosto muito das palavras
tupis e lamento que o Brasil não tenha um nome tirado dessa língua — disse
Pedrinho. —
Em compensação muitos Estados do
Brasil possuem nomes indígenas, como Pará (rio grande), Pernambuco
(quebra-mar), Paraná (rio enorme), Paraíba (rio ruivo), Maranhão (mar grande) e
outros. O tupi conseguiu encaixar na língua portuguesa grande número de
palavras de uso diário, como Taba, Moranga, Jaguar, Araçá, Jabuticabal, Capim,
Carioca, Marimbondo, Pipoca, Pereba, Cuia, Jararaca, Urutu, Tipiti, Embira,
etc.
— E também muitos Nomes Próprios
— advertiu Narizinho. — Conheço meninas chamadas Araci, Iracema, Lindóia,
Inaiá, Jandira. . .
— E eu conheço um menino chamado
Ubirajara Guaporé de Itapuã Guaratinguaçu, filho dum turco que mora perto do
sítio do Tio Barnabé — lembrou Pedrinho. —
Pois é isso — continuou a velha.
— Todas as línguas vão dando palavras para a língua desta cidade. O grego deu
muitas. O hebraico deu várias, como Messias, Rabino, Satanás, Maná, Aleluia. O
árabe deu, entre outras, Alfândega, Alambique, Alface, Alfaiate, Alqueire,
Álcool, Algarismo, Arroba, Armazém, Fatia, Macio, Matraca, Xarope, Cifra, Zero,
Assassino. A língua francesa deu boa quantidade, como Paletó, Boné, Jornal,
Bandido, Tambor, Vendaval, Comboio, Conhaque, Champanha. A língua espanhola deu
menos do que devia dar. Citarei Fandango, Frente, Muchacho, Castanhola, Trecho,
Savana. A língua italiana deu muito mais. Ágio, Bancarrota, Bússola, Gôndola,
Cantata, Cascata, Charlatão, Macarrão, Tenor, Piano, Violino, Carnaval, Gazeta,
Soneto, Ópera, Fiasco e Polenta são palavras italianas.
O inglês está dando muitas agora.
Das antigas posso citar Cheque, Clube, Tilburi, Trole, Esporte, Rosbife,
Sanduíche; e entre as modernas há várias trazidas pelo cinema e pelo futebol.
— Eu sei uma! — gritou Pedrinho
levantando o dedo.
— Diga.
— Okey, que também se escreve com
duas letras, OK. Quer dizer que está tudo muito bem. (...)
Dona Etimologia prosseguiu: —
Também vieram muitas palavras da África, trazidas pelos negros escravizados,
como Banze, Cacimba, Canjica, Inhame, Macaco, Mandinga, Moleque, Papagaio,
Tanga, Zebra, Vatapá, Batuque, Mocotó, Gambá. Da Rússia vieram Caleça, Cossaco,
Soviete, Bolchevismo, etc. Da Hungria vieram Coche, Cocheiro, Sutche, Hussardo.
Da China vieram Chá, Chávena, Mandarim, Leque. Da Pérsia vieram Bazar,
Caravana, Balcão, Diva, Turbante, Tabuleiro, Tafetá. Da Turquia vieram Tulipa,
Odalisca, Paxá, Bergamota, Quiosque. A velha parou na Turquia, para tomar mais
um gole de chá. E assim se foi formando, e se vai formando, a língua. Uma
língua não para nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos gramáticos
que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro dizermos de
modo diferente do que diziam os clássicos.
— Que vem a ser clássicos? —
perguntou a menina.
— Os entendidos chamaram
clássicos aos escritores antigos, como o Padre Antônio Vieira, Frei Luís de
Sousa, o Padre Manuel Bernardes e outros. Para os Carrancas, quem não escreve
como eles está errado. Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons
escritores no seu tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar ou a
adotar a língua de hoje, para serem entendidos. A língua variou muito e
sobretudo aqui na cidade nova. Inúmeras palavras que na cidade velha querem dizer
uma coisa aqui dizem outra. Borracho, por exemplo, quer dizer bêbado; lá quer
dizer filhote de pombo — vejam que diferença! Arrear, aqui é selar um animal;
lá, é enfeitar, adornar.
— Então lá há moças bem arreadas? — perguntou
Emília.
— Sim — respondeu a velha. — Uma
dama bem arreada não espanta a ninguém lá do outro lado. Aqui, Moço significa
jovem; lá, significa serviçal, criado. Também no modo de pronunciar as palavras
existem muitas variações. Aqui, todos dizem Peito; lá, todos dizem Paito,
embora escrevam a palavra da mesma maneira. Aqui se diz Tenho e lá se diz
Tanho. Aqui se diz Verão; lá se diz V'rao.
— Também eles dizem por lá
Vatata, Vacalhau, Baca, Vesouro — lembrou Pedrinho.
— Sim, o povo de lá troca muito o
V pelo B e vice-versa.
— Nesse caso, aqui nesta cidade se fala mais
direito do que na cidade velha — concluiu Narizinho.
— Por quê? Ambas têm o direito de
falar como quiserem, e, portanto ambas estão certas. O que sucede é que uma
língua, sempre que muda de terra, começa a variar muito mais depressa do que senão
tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra — as necessidades de
expressão tornam-se outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à
sua nova pátria. A língua desta cidade está ficando um dialeto da língua velha.
Com o correr dos séculos é bem capaz de ficar tão diferente da língua velha
como esta ficou diferente do latim. Vocês vão ver.
— Nós vamos ver? — exclamou
Narizinho, dando uma risada. — Então pensa que somos como a senhora, que vive
toda a vida e mais séculos e séculos?
— Vocês também viverão séculos e
séculos por meio de seus futuros filhinhos e netos e bisnetos — replicou a
velha.
— Menos eu! — gritou Emília. — Já
me casei e me arrependi bastante. Felizmente, não tive filhos — e como não
pretendo casar-me de novo, não deixarei "descendência" neste mundo...
— E se aparecer um grande pirata,
como aquele Capitão Gancho da história de Peter Pan? — cochichou Narizinho no
ouvido dela.
— Isso é outro caso... —
respondeu Emília, cujo sonho sempre fora ser esposa dum grande pirata — para
"mandar num navio"...
— Por falar em pirata. . . Onde
andará o Visconde? — indagou Pedrinho. — Depois que tirou Quindim da sala não o
vi mais.
— O Visconde está armando alguma
— disse a boneca, que andava desconfiada de qualquer coisa.
— Vamos procurá-lo, já, já, antes
que lhe aconteça alguma. E como tinham de procurar o Visconde, despediram-se de
Dona Etimologia, que prometeu aparecer no sítio de Dona Benta. (LOBATO,
Monteiro. Emília no país da gramática. São Paulo: Círculo do Livro. Com
adaptações)
QUESTÃO 1 – Após a leitura do
texto, seria INCORRETO afirmar que:
a) quando
os portugueses chegaram ao Brasil, já existia uma língua falada pelos índios.
b) uma
língua é formada por várias palavras, inclusive estrangeiras.
c) ao
português falado no Brasil foram incorporadas diversas palavras originárias de
vários povos.
d) a
maior parte dos nomes de cidades, rios e montanhas do Brasil são de origem
indígena.
e) palavras
de origem inglesa não são aceitas na língua portuguesa por serem de origem
muito diferente.
QUESTÃO 2 – O título “Gente de
fora” faz referência:
a) aos
estrangeiros que visitam o Brasil e influenciam nossa sociedade.
b) aos
termos linguísticos estrangeiros que empregamos no português.
c) às
palavras portuguesas de nossa língua.
d) aos
termos linguísticos tipicamente brasileiros.
e) a
palavras que não encontramos no dicionário.
QUESTÃO 3 –Podemos afirmar que o
texto lido pertence ao gênero:
a) dissertativo.
b) argumentativo.
c) narrativo.
d) descritivo.
e) expositivo.
QUESTÃO 4 – O trecho retirado do
texto que melhor resume como funciona uma língua é:
a) “Uma
língua não para nunca. Evolui sempre”. (linha 40)
b) “querem
fazer a língua parar num certo ponto”. (linha 41)
c) “quem
não escreve como eles está errado”. (linha 45 e 46)
d) “A
língua variou muito, sobretudo aqui na cidade nova”. (linha 47 e 48)
e) “Nesta
cidade se fala mais direito do que na cidade velha”. (linha 58)
QUESTÃO 5 – O texto faz distinção
entre duas cidades distintas, a “cidade velha” e a “cidade nova”. Sobre essas
duas cidades, não é correto afirmar que:
a) a
cidade velha faz referência ao local onde estão as palavras antigas.
b) a
cidade nova é onde se encontra a língua mais próxima da que usamos.
c) não
há diferença entre a cidade nova e a cidade velha.
d) na
cidade velha não entram as palavras citadas por Dona Etimologia.
e) na
cidade nova existem palavras antigas e novas.
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